TRABALHO DE CONCLUSÃO DO CURSO DE CAPACITAÇÃO EM ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO 2018

O acompanhamento terapêutico enquanto uma experiência estética na cidade

(Para uma melhor experiência de leitura desse texto, clique no título acima)

Trabalho da aluna Aline Amaral Sicari

 

“Afinal, o que norteia o acompanhamento terapêutico em suas andanças: a interrogação das encruzilhadas da cidade? ou a adaptação à ordem disciplinar das ruas de mão única?”

(Frayze-Pereira, 1997, p. 34).

 

Introdução

[1]

Bom-Tempo (s/d) apresenta a ideia de junção entre o contexto clínico-terapêutico com a esfera poética da vida. Esses, de acordo com a autora, estão conectados e são produto dos encontros.  Considera que “ao tensionar os encontros entre os meios clínicos e poéticos, põem-se em busca de relações materialistas e afetivas que possam criar uma experiência e junto a ela suas condições” (p. X).

Podemos pensar que o AT é justamente esse encontro entre o poético-estético na cidade que promove experiências e provoca condições de horizontalidade entre o eu e o outro que em outras clínicas, não poéticas-estéticas, não é possível de acontecer. O AT é a síntese de “corpos se esbarrando e se misturando ao corpo-cidade, instigando a percepção e o tecido social” (Scagliarini, 2015, p. 118).

De acordo com Lemke e Silva (2013), o AT é considerado um modo de ofertar cuidado em que o espaço aberto da cidade é privilegiado, o qual utiliza a “experiência da circulação pelo tecido urbano como dispositivo de produção de saúde” (p. 10). Nesta prática de cuidado, a potência terapêutica é produzida a partir das intervenções na cidade, possibilitando a produção de novos sentidos e a ressignificação dos espaços.

De acordo com Scagliarini (2015), o acompanhamento terapêutico pode ser compreendido como uma “intervenção que ganha a rua e a cidade” (p. 111), entendendo este urbano como cenário e espaço de intervenção ao-mesmo-tempo-e-agora. Assim, apresento a seguir breves reflexões sobre o experienciar a cidade e pessoas em situação de rua, o encontro pesquisadora à acompanhante terapêutica e, por fim, algumas considerações finais.

 

Experienciar a cidade e as pessoas em situação de rua

A experiência aqui relatada compõe parte do campo de pesquisa de minha dissertação de mestrado realizada em Florianópolis/SC no ano de 2017.

No processo de pesquisar, um dos recursos metodológicos foi o caminhar pelo Centro Histórico da cidade “jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos” (Galvão & Moreira, 1972), a fim de estar sensível e de construir uma experiência estética na cidade, com tudo que a compõe.

Nesse processo de arriscar jogar o meu corpo no Centro Histórico, mais especificamente na Praça XV de Novembro, dificuldades foram encontradas, algumas superadas e outras tantas ainda não compreendidas, pois assumir uma postura desinteressada (Pereira, 2012) e realizar a entrega de meu corpo pela cidade são desafios postos à lógica racional vigente.

O centro histórico é um espaço em que acontece tudo ao mesmo tempo: é palco de manifestações políticas, em cada esquina há apresentações culturais e artísticas, com músicos, performances, desenhistas e pintores que expõem e vendem seus trabalhos, assim como os/as artesãos/ãs e os povos indígenas, que utilizam o espaço como local de encontro e trabalho; lá também é espaço de circulação e permanência de pessoas em situação de rua, um local importante para manguear[2], além de ser composto pelo comércio formal de lojas, mercados, farmácias e também pelo comércio informal e ilícito.

eis que encontro Paulo[3], codinome Professor.

Paulo, o Professor, é uma das várias pessoas em situação de rua que habitam o centro histórico da cidade. Entendendo que as pessoas que fazem das ruas da cidade seu espaço de reXistência (Zanella Zanella, Levitan, Almeida & Furtado, 2012), foi o motivo pelo qual me interessei em realizar uma pesquisa com pessoas em situação de rua.

O encontro com Professor iniciou-se com uma conversa informal. Em seguida, Professor se ofereceu para me dar uma aula de história sobre a Praça XV de Novembro e os arredores históricos do centro, eu aceitei essa oferta e começamos a caminhar juntos pela praça, Largo da Alfândega e Mercado Público. E foi neste caminhar durante uma “aula” que o encontro terapêutico-estético emergiu.

 

A experiência: de pesquisadora à acompanhante terapêutica

[4]

[5][6][7]

A aula com o Professor poderia ter terminado pela praça, porém perguntei a ele se conhecia apenas a história da praça, se também tinha informações sobre outros lugares; ao invés de me responder de forma positiva ou negativa, me respondeu com uma pergunta: “tu tens medo de sair da praça comigo?” (Diário de Campo, Junho de 2017), respondi que não, e ele disse: “então vamos lá na Alfândega e no Mercado Público para eu continuar a minha aula…” (Diário de Campo, Junho de 2017). Em seguida, questionei-o sobre a pergunta do medo e ele respondeu sem pestanejar: “as pessoas têm medo de preto, drogado e morador de rua” (Diário de Campo, Junho de 2017).

A partir dessa abertura de dizer sobre ele e sobre a relação com o restante da sociedade, a história da cidade passou de protagonista a coadjuvante. Foi o momento em que ele contou um pouco sobre sua vida, sua relação com a cidade e o modo como tem vivido em situação de rua; mas rapidamente ele retomou a aula e voltou a falar da história da cidade.

Percorremos o Memorial Miramar[8], o Largo da Alfândega e o Mercado Público, nesse último local o Professor fez uma crítica à intervenção na arquitetura do prédio histórico com a criação de um telhado, o qual afirmou não estar de acordo, pois “desconfigurou a arquitetura colonial e antiga” (Diário de Campo, Junho de 2017). Aliado a isso, trouxe questionamentos sobre a função social do Mercado, pediu para que eu reparasse quantos negros estavam desfrutando do espaço e concluímos de imediato que não havia nenhum. Naquele espaço, de pele preta apenas alguns poucos funcionários, nenhum cliente.

Ao percorrermos o Mercado Público, o passo foi acelerado, questionei o porquê de andarmos rápido e ele contou que frequentemente era expulso quando atravessava o Mercado por dentro, então preferia andar mais rápido para isso não acontecer. Evidentemente os olhares de estranhamento em nossa passagem pelo Mercado foram presentes, tanto por parte dos clientes que desfrutavam um happy hour, quanto dos profissionais.

No caminho de volta até a Praça XV, a todo o momento Professor fazia menção a algo histórico. Ele prolongou-se um pouco mais quando passamos pela Rua Conselheiro Mafra e informou que era a rua da prostituição, desde antigamente até os dias atuais. Professor falou de práticas, acontecimentos e modos de se relacionar com a cidade do passado, mas que estão diretamente relacionadas com o presente e possivelmente contribuirão para o futuro.

ao mesmo tempo a presença do corpo e a necessidade de sua desaparição” (p.396). A necessidade de invisibilizar essas pessoas quando elas se fazem visíveis, quando circulam pela cidade em horário comercial e escancaram sua existência, sobressaiu.

 

Considerações finais

A aula aconteceu na mesma cidade em que o acompanhamento terapêutico se faz, uma cidade que é “processual, produtora de relações, negociações e conflitos, não uma cidade da homogeneização, da ordem e do silenciamento da diferença” (Lemke e Silva, 2013, p. 11). É a cidade vivida pelos excluídos, dos que estão a margem, dos que experimentam a loucura. É a cidade com suas lacunas e fissuras que possibilita que o encontro poético-estético-terapêutico aconteça dentro do que é inesperado.

A cidade aberta propicia a interlocução entre o pesquisar com o acompanhamento terapêutico, provoca o bom encontro e produz sentidos outros do que é instituído, ressignificações. Um entrelaçamento entre o pesquisador e o acompanhante terapêutico que pode ser resumido pelo estar-junto.

a “visão do outro em relação a mim e de mim em relação ao outro cria uma cumplicidade responsável entre nós, uma vez que nem a minha existência nem a existência do outro são soberanas, mas interdependentes” (Souza & Albuquerque, 2013, p. 52).

Sendo assim, a experiências desse pesquisar-at apresentou-se como sutilmente propositiva, potencialmente desafiadora e provocadora de encantamentos; possibilitou diferentes significações e atravessamentos, permitiu uma troca ética de saberes, um bom encontro no sentido espinozano, um encontro poético e afetações múltiplas.

 

Referências

 

Bom-Tempo, J. (s/d). Por uma clínica-poética.

Careri, F. (2013). Walkscapes: o caminhar como prática estética. (Frederico Bonaldo, trad.). São Paulo: Editora G. Gili.

Frayze-Pereira, J. A. (1997). Crise e cidade por uma poética do acompanhamento terapêutico. Equipe de acompanhantes terapêuticos do Instituto A Casa (Org). São Paulo: EDUC.

Galvão, Luiz & Moreira, Moraes. (1972). Mistério do Planeta. [Gravado por Novos Baianos]. In. Acabou Chorare. [LP]. São Paulo: Som Livre.

Scagliarini, A. P. C. (2015). A pele da cidade. In. Freitas, A. P. (Org). Nas trilhas do acompanhamento terapêutico. 111-120. Uberlândia: Composer.

Sousa, E. L. A. & Bechler, J. (2008). Labirintos na cidade contemporânea. Psicologia, Ciência e Profissão. 28(2). 390-403. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1414- 98932008000200013&lng=pt&tlng=pt

Souza, S. J. & Albuquerque, E. D. P. (2013). Bakhtin e Pasolini: vida, paixão e arte. In: Educação, arte e vida em Bakhtin. Maria Teresa Freitas (Org.). Belo Horizonte/MG: Autêntica Editora.

Pereira, M. V. (2012). O limiar da experiência estética: contribuições para pensar um percurso de subjetivação. Pro- Posições. 23(1). 183-198. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pp/v23n1/12.pdf

Zanella, A. V.; Levitan, D; Almeida, G. B; & Furtado, J. R. (2012). Sobre ReXistências. Psicologia Política, 12(24), 247-262. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519- 549X2012000200005

 

[1] Coloco entre aspas pois o encontro relatado não se trata de um encontro entre AT-acompanhado, mas sim um encontro entre pesquisadora-pesquisando. Mas, após a realização do curso de AT, foi possível identificar semelhanças neste processo, as quais tentarei evidenciar neste texto.

[2] Manguear é uma gíria utilizada por pessoas em situação de rua e se refere à ação de pedir.

[3] O nomes dos/das interlocutores/as da pesquisa de mestrado foram  mesclados entre nomes reais e fictícios, de acordo com o desejo de cada pessoa.

[4] Ao oferecer a aula para a pessoa, Professor informa que ao final a pessoa pode contribuir com qualquer quantia financeira.

[5] Hiedy de Assis Côrrea, conhecido pelo nome artístico de Hassis (1926-2001), foi um pintor brasileiro, nascido em Curitiba, mas morava em Florianópolis. Retratava em seus trabalhos artísticos elementos do estado de Santa Catarina, como a paisagem natural e a cultura local. Mais informações: http://www.guiafloripa.com.br/cultura/museus/museu-hassis

[6] Franklin Joaquim Cascaes (1908-1983)foi um artista e pesquisador da cultura açoriana. Para mais informações: http://www.guiafloripa.com.br/dicas/dicas-de-cultura/quem-foi-franklin-cascaes.htm

[7] Evidencio que o objetivo não é colocar em questão a veracidade das histórias contadas pelo Professor, mas sim evidenciar a existência de diferentes modos de compreensão do que é contado e as diversas maneiras que nos apropriamos disso.

[8] O Memorial Miramar foi construído em 2001. Representa uma homenagem ao trapiche de 1925 que era usado para embarque e desembarque de passageiros do serviço de transporte marítimo entre a ilha e o continente. Em 1928, nesse mesmo trapiche, foi inaugurado o Bar Miramar, um símbolo de modernidade. Configurou-se na época como ponto de encontro da sociedade de Florianópolis. Mais informações em http://www.guiafloripa.com.br/dicas/dicas-de-cidade/memorial-ao-miramar.htm

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